Sem categoria

Sopa de Letrinhas: Todo dia a mesma noite

29.05.2019

0
0
0
0
0
0

SOPA DE LETRINHAS: Todo dia a mesma noite

A história não contada da Boate Kiss

(Daniela Arbex)

 

Uma das minhas últimas leituras foi o livro sobre a história da Boate kiss. Aliás, não é esse o tema do livro … ele vai muito além da história do incêndio na boate Kiss. Ele adentra nas histórias humanas perdidas ali.

O incêndio na boate Kiss foi uma das maiores tragédias que ocorreram no país e resultou na morte de 242 pessoas, a maioria jovens que saíram pra curtir uma noite de alegria e terminaram a noite num show de horrores.

A boate Kiss ficava localizada na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, conhecida por ser um importante centro universitário da região. Ela fervilhava com suas festas universitárias e apresentações de bandas ao vivo.

Extensamente noticiado na época nos jornais do país e até mesmo fora do país, muito se falou sobre as causas do acidente, sobre os possíveis envolvidos nas causas, sobre os problemas de segurança na casa noturna, sobre a tristeza e dor dos enterros coletivos.

E quanto mais o tempo passava, mais se falava sobre dados técnicos, laudos, perícias, decisões judiciais, questões administrativas em questão, sobre números de mortos e números de feridos. Mas as histórias pessoais iam se perdendo.

Embora a nível local, ainda se falava muito sobre essas histórias pessoais, a nível nacional estas histórias eram escassas. Eram nomes e rostos que se passavam num filme de 242 tempos, sem “timing” pra se adentrar no real lar daquelas famílias. Nomes soltos ao vento.

 

 

No livro TODO DIA A MESMA NOITE – A história não contada da boate Kiss, a autora Daniela Arbex vai muito além do que estava por trás da tragédia. Ela não se ateve ao que já tanto sabíamos pelo desenrrolar das notícias nas mídias. O livro permeia detalhes que somente as rodas íntimas daqueles envolvidos diretamente com o incêndio da boate Kiss conheceram.

No livro somos transportados quase como num filme para a casa dos pais de jovens mortos. O relato do dia antes da tragédia, a angústia ao saber do incêndio e não saber do filho ou filha, os detalhes sobre o momento que receberam a confirmação da morte, a dor do reconhecimento do corpo.

Detalhes sobre os sentimentos de pessoas que trabalharam no salvamento, seja como bombeiro ou mesmo no suporte médico imediato ou hospitalar. O olhar para o momento da tragédia através da retina de quem esteve lá. um olhar que vai além de termos técnicos mas que extravasa os sentimentos.

Caminhamos em um terreno sombrio, pelos devaneios e lembranças de quem não esquece um minuto daquela madrugada terrível que nunca teve fim. Um dia que começou e nunca terminou. Todo dia a mesma noite. Uma noite sem fim para pais que acordariam eternamente sem filhos.

 

O coração do Rio Grande do Sul

 

Quando eu soube da tragédia, na manhã seguinte ao incêndio, consumi o conteúdo jornalístico avidamente. Estava dormindo segura na minha cama em Foz do Iguaçu quando meu pai fez questão de me acordar pra me dar a notícia.

Eu tão segura. E eu pensava naqueles jovens. E eu me identificava tanto. Não poderia ser diferente. Porisso meu pai me acordou. Ele sabia que eu iria querer saber.

Meus pais são da região, meu pai de São Sepé, minha mãe de Santa Maria. Com muitos parentes naquela região, estávamos ávidos pra saber dos primos. E eu também dos amigos. Afinal, eu agora morava em Foz, mas morei 14 anos no Rio Grande do Sul, 9 anos em Santa Maria.

 

 

 

Pensei tanto nos meus anos de Santa Maria, meus anos de juventude alegre e sem preocupações. Eu naquela mesma idade, ávida pelas saídas pras noitadas. Santa Maria da Boca do Monte, com seu jeitão provinciano, de quem quer parar no tempo, que une seus idosos e sua juventude num mesmo calçadão alvoroçado nos passos mas calmo de alma.

Minha identificação com a cidade, meu amor por Santa Maria, meus laços de sangue, de coração, de história, de infância, de família, de orgulho, de aflorescer como adulta naquele lugar, o tornavam tão significativo pra mim. Santa Maria era pra mim meu momento de transformação de eu em mim mesma.

Ali eu me descobria, me tornava gente de verdade, crescia, fazia as burradas, errava e acertava, vivia novas experiências, Santa Maria me transformava como certamente também transformava todos aqueles jovens.

Eu devo eu mesma a Santa Maria. Todos que por lá passaram, que viveram seus bons anos de faculdade, devem ter bons anos de memórias pra contar. E devem guardar aquela cidade no coração. Era impossível o coração não palpitar quando você se dava conta que o coração do Rio Grande do Sul neste momento sangrava em desespero.

Mas mesmo que você não tenha relação direta com a cidade, certamente sentirá a dor do livro. A dor das famílias. De forma muito mais avassalora do que naquele 27 de janeiro de 2013.

 

Vista de perto, a morte é ainda mais terrível

 

A sensibilidade da autora Daniela Arbex fez dar tanta humanidade para esta tragedia, que traz para nós leitores uma proximidade tão grande com as vítimas cujas histórias são relatadas no livro. É impossível não nos sentirmos como quem está sentada numa tarde fria de inverno, tomando um café fresco, comendo um  bolo de fubá e ouvindo da própria família enlutada suas tristes lembranças daquele fatídico dia.

Minha imaginação voa. Consigo enxergar as paredes da sala, sentir o cheiro do bolo, a textura da renda da toalha, sinto meus pés tensionados contra o chão enquanto ouço o familiar contar sobre aqueles momentos tão terríveis.

Ler TODO DIA A MESMA NOITE é como ouvir  tudo diretamente deles, como presenciar os angustiantes diálogos, ouvir-lhes falando sobre o filho quando bebê, da infância travessa, das dificuldades na faculdade, dos gostos pessoais. De como se vestiam, das amizades, os namoricos. De cada momento terrível daquela noite terrível que assolou Santa Maria.

 

 

Através do livro conhecemos as vítimas num realismo que traz a tragédia para uma dimensão mais intensa. Pois quanto mais próximos estamos das pessoas, mais sofremos, mais sentimos. E é isso que os pais de Santa Maria querem que as pessoas entendam: “e se fossem os seus filhos ??”. “Vocês também iam falar para esquecer, para deixá-los descansar ?”

Até hoje os pais enlutados de Santa Maria lutam por justiça e mantem na principal praça da cidade uma tenda  como uma homenagem aos 242 mortos e também como forma permanente de luta por justiça. E todo dia 27 acontece uma vigília no local para relembrar a todos sobre a tragédia.

Quando você olha para aquela tenda, olha para aquele cartaz, com 242 rostos, é estarrecedor. Rostos tão jovens, tão lindos, imaginando todo uma vida cheia de sonhos pela frente. Mas são apenas rostos. Rostos onde apenas imaginamos um futuro que nunca virá, e do passado não sabemos.

Através do livro, alguns dos rostos passarão a ter uma história. O gosto pela música campeira. O jeitão brincalhão com a mãe. Aquela ansiedade de quem está prestes a noivar. A vida social agitada do garotão que adora festar e festar e festar. Ter filho cedo as vezes traz grandes responsabilidades. Enquanto em alguns, o riso é fácil e tudo ainda é pura diversão, em outros a vida é levada desde cedo focada no trabalho.

Nomes que se tornam histórias palpáveis. Palpáveis e reais. Nos aproximam da realidade humana, de nós mesmos. Não é como uma notícia de tv. São famílias que funcionam exatamente como as nossas, ou dos nossos vizinhos, ou amigos. E quando damos alma e realidade para estas fotos que eram apenas rostos perdidos num mural, eles se dimensionam de outra forma pra nós.

Aliás, falei muito aqui sobre as histórias das vítimas, sobre o lado dos familiares das vítimas, mas as histórias são contadas de múltiplos ângulos. Não apenas com o olhar dos familiares das vítimas, mas também com relatos dos sobreviventes e de profissionais que atenderam as vítimas naquela noite, como taxistas, bombeiros, médicos, enfermeiros, etc. E também são relatos que enriquecem muito nossa compreensão daquela noite.

São tantos relatos impactantes, como a do cirurgião que atendia naquela madrugada as vítimas, via-as morrer diante de si na emergência do Hospital Universitário de Santa Maria e enquanto atendia as vítimas ficou sabendo que seu filho também também estava na boate. E teve que seguir firme trabalhando para que mais pessoas tivessem chances de sobreviver enquanto seus familiares tratavam de tentar descobrir onde estava seu filho e se ele estava vivo.

Fico chateada de tecer um relato ou outro aqui, que prefiro parar por aqui. Todos os relatos merecem ser lidos. Todos sem exceção. Não há um mais triste que o outro, ou um mais impactante que o outro, ou um ou outro que chamou mais a atenção. Este fica como “retrato” de uma breve história que aparece por lá. Mas você deve ler por si só, pra sorver tudo por completo, entender tudo com sua alma, se solidarizar com cada família pois cada uma delas é tão peculiar e diferente, mas a dor é avassaladora e inimaginável para qualquer um deles.

Nada é mais impactante que o dado que a autora traz numa das páginas acerca de um dos dados resultantes da tragédia. Considerando a idade dos mortos e a longevidade média do brasileira, estamos falando de uma tragédia que ceifou 9 mil anos potenciais de vida. 9 mil anos de vida perdidos ! É estarrecedor !

Pensar que Daniela Arbex retrata apenas algumas das histórias nos faz ter um pequeno panorama do quanto jamais teremos real dimensão da tragédia. Pois a tragédia humana é imensamente maior que uma tragédia meramente numérica.

Quando lemos sobre as histórias, tomamos consciência que não são apenas 242 pessoas que morrem. São famílias inteiras ligadas a cada um destes mortos. Casais que se desfazem, famílias que se desestruturam, vidas que perdem o sentido, o vazio imenso que fica, irmãos em sofrimento, ano após ano o tempo se passa … mas é como se o tempo não passasse. Como se o tempo tivesse parado naquela noite para sempre.

Pra todo fim, a mesma noite.

 

 

Recomendo fortemente a leitura, pois te dá uma outra dimensão sobre a tragédia. Mas prepare sua mente e seu estômago. Pois é forte, brutal, visceral.

Você termina a leitura como uma imensa sensação de vazio. Mas há história que merecem ser conhecidas. Como homenagem aos mortos, para que todos saibam que eles existiram, eram importantes, nos importamos com eles. E pra que coisas assim numa mais aconteçam.

 

RESUMÃO DO LIVRO

LIVRO: TODO DIA A MESMA NOITE – A história não contada da Boate Kiss

EDITORA: Intríseca

AUTORA: Daniela Arbex

SOBRE: Retrata fatos ocorridos durante a incêndio da Boate Kiss que vitimou 242 pessoas, mas através de relatos pessoais tantos de vítimas, familiares e profissionais que trabalharam durante o episódio. O livro extrapola o campo meramente informativo e traz muita humanidade à tragédia, nos dimensiona melhor dentro das catástrofes individuais resultantes em cada família que aparece no livro.

LINGUAGEM: Fácil leitura, linguagem fácil, narrativa fluida e com múltiplos diálogos, pouco de vocabulário regional. Sem necessidade maior conhecimento prévio sobre a tragédia para entender a dimensão do acontecido. Bem explorado no livro.

 

 

Deixe um comentário

Paty Martinez no Youtube

Carregando...